A origem do capitalismo e do racismo
Uma breve história cruel de como o sistema capitalista nasceu e sua relação inerente ao racismo.
Para entender o racismo, é necessário entender a origem do capitalismo.
A melhor maneira de fazer isso é olhar para diferentes períodos da história.
Para começar, é importante pontuar que outras sociedades não conheceram o racismo como nós conhecemos hoje. Isto é, como um sistema de dominação que determina posições, tarefas e funções para corpos e espaços.
Não é possível falar do racismo como conhecemos hoje, como um fenômeno estrutural e como ele se apresenta dentro da realidade capitalista sem voltar um pouco no tempo.
Para situar bem o assunto, precisamos remeter aos processos de colonização ibérica no século XV. Antes disso, não se tem notícia de racismo de forma sistematizada.
O racismo passa a acontecer na interligação do capitalismo como um grande sistema mundial.
O capitalismo está em todas as partes do planeta.
Pegue como exemplo a garrafa d’água que está na sua geladeira. Podemos ter formas diferentes de descrever o nome dessa garrafa através de um idioma. Entretanto, a sua relação com essa garrafa, a relação de propriedade, de posse com o objeto, essa é uma relação universalmente compreendida em nossa sociedade.
É possível expressar a propriedade em todos os rincões do mundo. Conseguimos nos referir aos objetos nessa relação de posse e propriedade. Isso é um legado bem típico do capitalismo.
A partir do momento em que o sistema de acumulação de bens se encaixa em um sistema mundial, tarefas também são adicionadas e com isso o sistema se vale da racialização.
O processo de chegada dos colonizadores nas Américas se dá no momento onde a justificativa do mundo é confessional e através da fé.
Aqueles sujeitos que não possuem a fé certa na península ibérica do século 15 ainda eram tolerados. Ainda era possível ter a fé errada.
Entre o mundo Cristão e o mundo muçulmano judaico existia uma cisão, mas ambos tinham um Deus e o fato de ter um Deus justificava suas vidas.
Eles eram humanos por ter um Deus.
Quando os espanhóis aportam por aqui, eles descobrem pela primeira vez um povo que não tem um Deus.
Ao não ter Deus não se tem fé. E ao não se ter fé, não se pode ser considerado gente.
Isso revoluciona todas as relações sociais.
A partir desse momento, um espaço inteiro se torna uma zona bestial.
Uma zona que não precisa de nenhuma mediação para que se dê a exploração do trabalho.
Os primeiros momentos de dominação e exploração da América vai se dar a partir dessa bandeira, da inexistência de qualquer tipo de respeito ao corpo ou as coisas.
Tudo passa a ser reconfigurado a partir da perspectiva e modo de funcionamento dos europeus.
E é assim que isso segue mais ou menos até os séculos 15 e 16, quando os espanhóis vão ter um evento que é bem importante na história: o julgamento de Valladolid.
Este evento acontece na península ibérica, em uma cidade espanhola.
Esse julgamento tem duas posições no tribunal eclesiástico, a posição de Bartolomeu de las Casas e de outro clérigo, Juan Ginés de Sepúlveda.
Bartolomeu diz que a população indígena possui alma. A alma só precisa ser colocada de acordo com a fé correta. O fato dela não ter um Deus não a desumaniza por completo.
Enquanto Sepúlveda diz que indígenas não somente não tem alma como não tem preparo algum para entender qualquer relação com a propriedade.
E não tendo esse preparo, não se tem condições de utilidade para o sistema e para as relações sociais ao modo europeu. São pessoas que podem ser extintas a qualquer momento.
Os debates seguiram e ambos declararam que haviam vencido.
Os dois argumentos mais tarde vão descambar no que nós entendemos hoje na modernidade por racismo antropológico, no caso do argumento de Bartolomeu e racismo científico, no argumento de Sepúlveda .
A cristandade passa a entender que estes sujeitos possuem alma. Eles podem ter o Deus errado, mas possuem alma e por isso, é necessário preservar os corpos deles, mas nutri-los de uma outra simbologia, no caso, a simbologia da cristandade.
Esses sujeitos precisam ser educados e aí se iniciam os processos de catequização e a partir daí são colocados na fé correta.
Contudo, a grande questão é que esse processo de assimilação não gera uma igualdade. O que se gera é uma condição de poder circular nesse mundo ocidental, mas em uma condição subjugada, uma condição de quase igual.
A partir daí se inicia uma reconfiguração dos processos de exploração do trabalho nas colônias.
A população originária passa a viver em regime de servidão.
Tais regimes, hipoteticamente não tão cruéis, na verdade eram esquemas de genocídio.
E isso aconteceu com diversas populações originárias da América, sendo que muitas sumiram e não existem mais.
A grande questão entre essas duas posições é que nenhuma das duas resolve o que estava acontecendo.
Na verdade, o que nós temos no primeiro momento da chegada dos espanhóis nas Américas são as táticas de saque.
E com as táticas de saque o racismo de Sepúlveda é o que impera. O racismo da morte, o racismo de negação total da humanidade, o racismo que entra para destruir.
Só depois de tudo isso é que entra uma perspectiva mais cultural, que vai preservar o corpo, porque o corpo precisa ser o exercício e o lugar subalterno de trabalho.
Assim se passa a permitir algum tipo de relação e uma certa normalidade.
Essa é a grande dinâmica que fundou o capitalismo.
O capitalismo vai se dar através das transferências de capital das colônias para os grandes centros, permitindo uma acumulação de capital muito relevante que propicia a construção de um processo de industrialização e de reformulação das relações sociais nas metrópoles.
Isso tudo com o sacrifício corporal e com o sacrifício espacial do continente americano.
Este texto é uma adaptação da transcrição do vídeo “A origem do capitalismo e do racismo”, onde Felipe Montiel fala sobre o tema: